quinta-feira, 26 de maio de 2022

Oficina de escrita - texto de apreciação crítica.

 Uma Farsa de Inês Pereira

    A representação da peça Uma Farsa de Inês Pereira, encenada por Tomé Vieira, da Companhia de Teatro Actus, é uma adaptação contemporânea da obra homónima de Gil Vicente.

    Começa por surgir Inês Pereira a queixar-se da vida – jovem e solteira, deseja casar-se urgentemente para fugir à sua vida de cativeiro e às fastidiosas tarefas domésticas. Após recusar o pretendente proposto por Lianor Vaz, os judeus casamenteiros encontram o Escudeiro, um homem galante, discreto, bem-falante e que sabe «tanger viola», requisitos dos quais a jovem não abdica. Após o casamento, Brás da Mata demonstra ser altivo, controlador e agressivo, privando-a de liberdade. Com a posterior morte do marido em combate, às mãos de um pastor mouro de quem fugira cobardemente, Inês, agora dotada de um pragmatismo ditado pela experiência, volta a casar-se, desta feita com Pero Marques, um lavrador abastado que ela tinha inicialmente desprezado por não ser discreto. Aproveitando-se da liberdade concedida pelo marido, Inês trai-o descaradamente e convence o ingénuo Pero a carregá-la às costas até ao local do encontro amoroso com o Ermitão. A representação encerra com Inês a entoar uma canção alusiva à condição do marido traído, cumprindo, deste modo, o mote  Mais vale asno que me leve, que cavalo que me derrube.

    Um dos aspetos cativantes da encenação foi o facto de sensibilizar o público para problemas atuais, já existentes no século XVI, evidenciando a intemporalidade da mensagem. Efetivamente, esta peça, adaptada ao século XXI, tem a intenção de provar que os comportamentos do passado ainda se mantêm nos dias de hoje. A título de exemplo, podemos apontar a própria Inês Pereira, cuja exigência em relação à escolha do futuro marido a empurrou para a infelicidade, resultado de uma relação abusiva, evocando o eterno e universal flagelo da violência doméstica. A infidelidade de Inês Pereira, que se vale da ingenuidade de Pero Marques, também é um comportamento que se perpetua até hoje, sem esquecer a devassidão do clero, e o seu desrespeito pelo voto de castidade, transversal a todas as épocas.

     Outro ponto digno de registo é a representação do cómico, recorrendo à realidade da nossa época, nomeadamente nas partes em que as personagens cantavam músicas da atualidade, bem como nos momentos de dança, para tornar o humor mais abrangente e próximo do público, explorando várias situações engraçadas, apelando à caricatura e ao exagero, a fim de provocar o riso. No entanto, as partes da peça que suscitaram mais gargalhadas por parte da plateia foram, indubitavelmente, as cenas de cariz sexual.

    No que concerne à interpretação, o ator que mais sobressaiu foi o que incarnou o Escudeiro, pois conseguiu espelhar o verdeiro caráter de Brás da Mata – calculista, dissimulado, recorrendo à lisonja hipócrita, depressa revela a sua verdadeira personalidade ao casar com Inês Pereira, mostrando-se autoritário e agressivo.

    O guarda-roupa, adaptado ao século XXI, também merece alguma atenção, na medida em que procurou caracterizar devidamente as personagens, com destaque para a indumentário de Pero Marques, pois retrata bem o seu lado camponês. 

    Em contrapartida, os cenários deixaram bastante a desejar, por se revelarem pobres e vagos, embora o artifício utilizado para abordar os vários espaços, através de uma simples cortina, cuja função visava a delimitação dos mesmos, tenha sido algo engenhoso. Assim, umas das recomendações que deixamos seria a aposta na construção de cenários mais elaborados e apelativos.

    Consideramos, por isso, que a peça soube cativar o público escolar, pela adaptação ao nosso tempo, pela dimensão satírica, sem descurar a função didática e moralizadora, apanágio da obra de Gil Vicente, com o propósito de corrigir os vícios. É caso para dizer Ridendo castigat mores, que é como quem diz, a rir se corrigem os costumes.

                                   Texto elaborado na turma do 10º A, (com a coordenação da professora Fernanda Magalhães)