Sorte a minha!
Mais um dia como todos os
outros. Acordei por volta das seis da manhã, dei a minha corrida matinal e
ainda tive tempo de fazer uns alongamentos. Tomei o meu pequeno-almoço com
calma, tomei um banho e, como ainda faltava algum tempo para o autocarro passar,
dei uma revisão na matéria.
Quer dizer, isto foi o que
eu imaginei na minha cabeça a noite passada. Mesmo que eu fosse capaz de
acordar a tal hora, lá fora chovia torrencialmente e seria impossível dar a tal
“corrida matinal”. A verdade é que só de pensar em correr, logo de manhã, quase
me falta o ar. E até cheguei a pôr o despertador para as seis da manhã, mas
assim que acordei, adormeci novamente. Voltei a acordar por volta das nove,
quase uma hora depois de as aulas terem começado. Apenas tive tempo de vestir
umas calças e uma t-shirt. Peguei na bicicleta e pedalei ao máximo. Mal
conseguia ver por causa da chuva. E, para minha sorte, começou a cair granizo a
meio do caminho! Porque é que não peguei no suéter?!
Com aquele frio achei que ia congelar. Mas tinha mesmo de chegar antes da
próxima aula. Tinha teste a português e ainda tinha de comprar uma caneta, pois,
com a pressa, esqueci-me da mochila. Ainda para mais, tinha tirado negativa no último
teste e, se não melhorasse, a minha mãe não me ia deixar voltar às aulas de
música. Não podia deixar isso acontecer de todo! Principalmente depois das
horas que passei a estudar.
Cheguei a tempo! Toda
ensopada, constipada, a tremer e cheia de feridas por causa do granizo, mas
cheguei a tempo. A única coisa boa daquele dia! Achava eu. Mal entrei para a
sala já tinha o diretor à minha espera. Acompanhei-o até ao gabinete e até já
sabia o que aí vinha.
- Isto assim não pode
continuar! Já é a terceira vez esta semana que chega atrasada e nesse estado!
- Na verdade é a quarta. - Corrigi.
- Ainda pior! Estou a ser
tolerante consigo há imenso tempo, menina Jane! Mais um atraso que seja e está
expulsa!
- Ok… Acho que nunca o tinha
visto tão furioso. Aliás, ele costumava ser bastante calmo mas, desta vez, estava
mesmo fora de si. O que eu ia fazer? Às vezes parecia mesmo que o Universo se
esquecia da minha existência. Sabem quando uma pessoa de vez em quando diz:
“Que sorte que tive, começou a chover mesmo quando cheguei a casa.” Pois,
comigo isso nunca acontece. Aquilo que posso dizer é: “Sempre que saio de casa
começa a chover.” Parece que essa tal de sorte não quer nada comigo. Sorte a
minha, não é?
Ao menos, o meu professor
deixou-me fazer o teste noutro dia. Pelo menos isso. Naquele momento, estava a
ferver de febre, a tremer de frio, quase a desmaiar. Tiveram de chamar uma
ambulância. Desmaiei pouco antes de ela chegar e acordei no hospital com a
minha mãe aos pés da cama, preocupadíssima. Fingi-me de adormecida. Sabia que
quando ela me visse acordada, ia levar um raspanete. Já não era a primeira vez
que aquilo acontecia.
Dois dias depois, tive alta
e fui fazer o teste. Consegui uma positiva! Baixa, mas pelo menos, podia
continuar com as aulas de música. A música era a única coisa que me corria bem
na vida. Nem sei o que faria se a minha mãe me impedisse de tocar violino.
Naquela noite, tive um concerto e correu bem. O pior foi á saída quando vi o
Nate a beijar a Érica.
O Nate e eu éramos melhores
amigos desde sempre. Crescemos juntos e éramos inseparáveis. Eu comecei gostar
dele há algum tempo atrás mas nunca tive coragem para lhe contar. Já a Érica
era minha rival. Tocávamos juntas mas ela fazia sempre de tudo para tentar
arruinar as minhas apresentações. Por isso, parece que o amor também não era
muito o meu forte.
A música era sem dúvida a
única coisa que corria bem comigo. Tocava desde os meus cinco anos e sempre
cantei desde pequenina. Todos dizem que eu tenho um dom para isso. Talvez por
isso, quando toco ou canto, seja a única altura em que o Universo se lembra de
que eu existo.
Cheguei a casa e dei a
desculpa de que estava bastante cansada para fugir às felicitações. Apenas me
deitei na cama a tentar raciocinar. Acabei por adormecer com as lágrimas a
escorrerem-me pelo rosto.
Acordei no dia seguinte e
não me apetecia fazer nada. Acabei por pegar num livro e comecei a ler. Não me
apetecia sair de casa, tinha a sensação de que ia acabar mal, mais uma vez. Mas
assim que peguei no livro caiu um envelope. Estava escrito em Francês e apenas
distingui as palavras: “Musical Opera Paris”. Bastou isso para descer as
escadas a correr e a gritar.
- Mãe! Oh mãe!
- Encontraste a carta, foi?
- Entrei? Entrei para a Ópera?
- Não só entraste como
ganhaste uma bolsa de estudos para os próximos 3 anos. Só temos um problema. As
tuas notas a francês não são lá grande coisa.
Era verdade. Apenas tinha
conseguido positiva porque o Nate me foi sussurrando algumas respostas. Nem sei
o que faria sem ele.
- Eu vou melhorar, prometo!
Posso ir? Por favor…
- Podes ir, mas tens de te
esforçar mais no francês e no resto.
E assim comecei a estudar um
pouco todos os dias. A única maneira que arranjei para não voltar a chegar
atrasada às aulas foi mesmo ir com a minha mãe logo às seis e meia da manhã em
vez de ir de autocarro às sete e meia. Assim não adormeço de certeza uma vez
que ela faz questão de me vir acordar.
No último dia de aulas,
despedi-me de toda a gente. Passei o dia com todos os meus amigos. Foi então
que o Nate me chamou à parte. Contou-me que gostava de mim e pediu-me em
namoro.
- Mas então, e a
Érica?-perguntei.
- Já não nos falamos há
meses. Ficou toda chateada assim que descobriu a nossa amizade e nunca mais me
dirigiu uma palavra.
Um
ano depois, sou uma das melhores alunas da escola da Opera e, apesar de não
dominar muito o francês, desenrasco-me bem. Quanto ao Nate, estamos juntos há
um ano e falamos todos os dias.
E,
no final das contas, o Universo acabou por se lembrar da minha existência e parece
que decidiu compensar-me pelos anos de esquecimento.