quarta-feira, 3 de julho de 2024

Testemunho de uma voluntária - Cabo Delgado (Moçambique)

 No âmbito do domínio Segurança, Defesa e Paz da componente de Cidadania e Desenvolvimento, os alunos da turma B do 11.º ano tiveram a oportunidade de ouvir o impressionante testemunho de uma voluntária oriunda do concelho da Póvoa de Lanhoso, que se encontra a trabalhar numa missão na região de Cabo Delgado, em Moçambique, desde 2021. O relato de Fátima Castro, que aqui se publica para que outros possam também refletir sobre estas questões tão prementes, foi uma oportunidade para ponderar e discutir no grupo-turma sobre os conflitos armados que ainda hoje constituem uma grave ameaça à segurança humana e à paz mundial.


O meu nome é Fátima Castro e fui enviada em 2021, em nome da Arquidiocese de Braga, para o serviço da Diocese de Pemba, na Paróquia de Santa Cecília de Ocua, província de Cabo Delgado – Moçambique. Integro o projeto Salama! – criado no âmbito de um acordo de cooperação missionária entre as duas dioceses - e que tem como principal objetivo a dinamização de toda a parte pastoral e social de Santa Cecília de Ocua.

A missão onde me encontro fica situada a sul da província de Cabo Delgado, sendo esta a província mais a norte de Moçambique. É conhecida por alguns como "cabo esquecido" ou “cabo desligado”. Está a 1600 km da capital, Maputo. As casas são em matope e canas de bambú, a eletricidade ainda não chegou e só encontramos água nos poços comunitários. É uma das aldeias mais pobres da província. O clima de guerra e violência também não ajuda ao desenvolvimento.

Em 2017, aconteceram os primeiros ataques em Cabo Delgado. A guerra começou com operações violentas e de pequena escala, no distrito de Mocímboa da Praia, e intensificou-se a partir de 2019, com a chegada de dezenas de combatentes jihadistas estrangeiros e a entrada de armamento mais sofisticado, tendo-se estendido os ataques a todos os distritos.

Na missão onde me encontro, os terroristas do Estado Islâmico atacaram, pela primeira vez, várias comunidades, em Outubro de 2022. Durante dias, queimaram capelas, casas e roubaram diversos bens nos mercados. Muitos acabaram por morrer às mãos destes homens. Quase dois anos depois, em Fevereiro deste ano, os insurgentes voltaram a entrar, desta vez na aldeia onde moro e onde fica a casa da missão. Graças à prontidão do exército do Ruanda, a missão foi poupada, mas muitas vidas não.

Nos dias que se seguiram, mais de 100 mil pessoas fugiram das suas casas. Cerca de 60% são crianças.  Muitos partiram numa viagem sem destino, por machambas (campos agrícolas) e estradas, com crianças ao colo e os poucos pertences amarrados numa capulana e levados à cabeça, e num movimento simultâneo de milhares de pessoas.

Há muitos lugares que se tornam refúgios quando há um ataque. Conto-vos duas histórias. O papá Joaquim Girajeque disse-me que albergou na casa dele cerca de 50 pessoas. Alguns eram da família. Outros eram-lhes desconhecidos. Mas todos eram irmãos. A varanda da casa foi porto de abrigo de homens e as mulheres e crianças dormiam no interior. Repartiu com aqueles que chegava o pouco que tinha: aos que vinham com fome e sede, deu-lhes de comer e de beber… aos que não conseguiram trazer roupa nenhuma, partilhou a pouca que tinha… aos que estavam doentes, ele cuidou!

A jovem mamã Arcélida foi uma das que precisou de ser acolhida. Fugiu da casa a meio da tarde quando ouviu os primeiros disparos na nossa aldeia. O sol que ainda se fazia sentir com intensidade e o estado de graça em que se encontrava (estava quase com 9 meses de gestação) não lhe permitiam correr. Mesmo assim percorreu quase 20km, a pé e num passo acelerado, e conseguiu passar o rio Lúrio. Na primeira casa que viu, sentou-se um pouquinho na varanda e pediu para descansar. E o Benjamim, curioso com o mundo, decidiu nascer naquela mesma casa. Naquela mesma e dolorosa noite. De manhã, quando os encontrei, vi a serenidade dele dormindo, sem imaginar o sofrimento da sua mãe e o mundo que o espera!

Aqui, em Cabo Delgado, aprendi a viver com as notícias da guerra. Antes eram longínquas. Agora, que conheço os rostos e os nomes que esta guerra feriu e continua a provocar sofrimento, vivo, de forma diferente. E eu assisto todos os dias, com muita tristeza e angústia, ao sofrimento do “meu” povo! Mas também experimento o verdadeiro sentido da caridade, da presença… do “estamos aqui”! Tanta gente boa que conheci e que nos quis ajudar! Ao longo destes últimos meses fui doando tudo quanto tínha… roupas, comida, cobertores, lonas… E fui-me doando. Ouvi as mamãs Joaquina e Sónia que perderam os seus maridos neste ataque, o papá Joaquim que foi capturado por eles… e os rostos dos filhos pequeninos que continuam sem entender a ausência daqueles que tanto amavam e… e ainda hoje continuam a perguntar quando é que o papá volta do campo.

Infelizmente, em todas as partes do mundo, “quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres que morrem.” (Jean Paul Satre).

 

Fátima Castro