domingo, 6 de março de 2022

As “princesas” e as “vidas”…

 Alerta: não existem princesas na história, nem donzelas, nem rainhas. Não há nenhum palácio, não há dragões e também não há nenhum príncipe.


Nasci um pouco louca por poesia, podia encontrar-me a acariciar os meus livros enquanto estava completamente sozinha no meu quarto. 

Quando não tinha amigos, ia ter com as folhas soltas rabiscadas com poemas que eu mesma escrevi: era quase bom, o suficiente.

Quando tinha amigos só os ouvia a reclamar porque eu estava sempre demasiado ocupada a olhar pela janela, a fantasiar sobre um mundo cheio de cor e alegria, onde voavam envelopes mágicos, onde havia corujas a piar, a idolatrar ogres gigantes e comboios que me levam para um lugar encantado, longe, longe, muito longe daqui.

A minha mãe era uma mulher que, mesmo sendo má, eu amava-a mais que tudo no mundo. Uma vez chegou perto de mim e estendeu a sua mão: um cubo de açúcar.

    - Para ti. - diz ela com um enorme sorriso no rosto.

Gananciosamente, eu aceitei, coloquei-o no centro da minha língua e, assim, percebi que não era açúcar… tinha um forte sabor a sal.

É isso que é o abuso, saber que vamos receber sal e, mesmo assim, esperar açúcar durante dezanove anos.

Existem mães que nos dizem para nunca mais tocar no fogão, mas também existem mães que nos arrastam para lá aos pontapés e a gritar, a rir-se enquanto observam as chamas a tocar os nossos dedos.

Os pássaros não conseguem voar quando lhes cortas uma das suas asas. Tu não ficaste satisfeita com apenas uma das minhas asas, tu arrancaste as duas de dentro da raiz para te assegurares que eu não voaria para lado nenhum, nunca mais.

Chegou um tempo, quando a poesia me mostrou como eu poderia sangrar sem a necessidade do sangue: o meu primeiro amor.

 O meu amado julgava ser o meu príncipe encantado quando, na verdade, era, na verdade, um dragão da pior espécie.

Se uma casa não se torna automaticamente num lar, então, um corpo não se torna num lar em pouco tempo, mas ele achava que o meu corpo era dele também. Foi só um dragão idiota.

Desde, então, eu não tenho medo de monstros que se escondem debaixo da minha cama, tenho muito mais medo de rapazes, como ele, os meus dragões.

Fechada num quarto, com o coração em pedaços, à espera de um fiel cavaleiro que afugentasse todos os dragões que estavam ao meu redor. Mal sabia eu que podia ser o meu próprio cavaleiro.

A minha mãe disse ao médico que estava a ver estrelas nos seus olhos e que elas eram quase tão bonitas como se o quatro de junho tivesse acabado de chegar. 

O médico simplesmente disse:

    - Não são estrelas. É cancro.

Quando a tua mãe começa a esquecer o teu nome, começas a questionar se realmente existes. Afinal, foi ela que te deu um nome.

Pensamos que os nossos pais são inquebráveis, mas não são.

As crianças não estão destinadas a morrer antes dos pais. Eu não estava destinada a ser uma urna de cinzas na mesa-de-cabeceira da minha mãe.

Quando estávamos sentadas na varanda, a observar as estrelas, tu estavas a falar comigo como se fosse o último dia da tua vida, mal sabia eu que era realmente o último dia da tua vida.

Quando paraste de falar, disse-te que te amava muito - tarde de mais -, já não estavas consciente.

Percebi que não falavas mais e entendi que tinhas acabado de falecer, bem na minha frente. Encostei o ouvido à tua boca com a esperança de ouvir apenas a mais pequena nota da tua voz, pela última vez.

Depois de anos e anos, percebi que não preciso de um príncipe, que não preciso de ter medo de dragões, que não fiquei á espera de um cavaleiro e nunca mais me importei com o que as pessoas diziam sobre mim.

Se a poesia é uma casa dominada pelas chamas, então, eu vou correr de volta para dentro dela para salvar todas aquelas folhas soltas rabiscadas por poemas que eu mesma escrevi e guardei por tanto tempo, para as entregar a todas as mulheres do mundo.

Será que uma mulher alguma vez encontrará a sua paz? Ou a morte é a nossa única esperança coberta de “penas”?

Não é preciso ter um marido a mandar na relação para ser uma mulher a sério, não é preciso ter filhos para ser uma mulher a sério, não é preciso seguir todos aqueles padrões de beleza para ser mulher, a única coisa necessária para ser mulher é identificar-se como uma.

Quando alguém se oferece para te salvar faz a tua missão de te salvares a ti mesma.

 Fim da história.

 Margarida Ferreira – 7.º A