No âmbito do domínio Segurança, Defesa e Paz da componente de Cidadania e Desenvolvimento, os alunos da turma B do 11.º ano tiveram a oportunidade de ouvir o impressionante testemunho de uma voluntária oriunda do concelho da Póvoa de Lanhoso, que se encontra a trabalhar numa missão na região de Cabo Delgado, em Moçambique, desde 2021. O relato de Fátima Castro, que aqui se publica para que outros possam também refletir sobre estas questões tão prementes, foi uma oportunidade para ponderar e discutir no grupo-turma sobre os conflitos armados que ainda hoje constituem uma grave ameaça à segurança humana e à paz mundial.
O meu
nome é Fátima Castro e fui enviada em 2021, em nome da Arquidiocese de Braga,
para o serviço da Diocese de Pemba, na Paróquia de Santa Cecília de Ocua,
província de Cabo Delgado – Moçambique. Integro o projeto Salama! – criado no
âmbito de um acordo de cooperação missionária entre as duas dioceses - e que
tem como principal objetivo a dinamização de toda a parte pastoral e social de
Santa Cecília de Ocua.
A missão
onde me encontro fica situada a sul da província de Cabo Delgado, sendo esta a
província mais a norte de Moçambique. É conhecida por alguns como "cabo
esquecido" ou “cabo desligado”. Está a 1600 km da capital, Maputo. As
casas são em matope e canas de bambú, a eletricidade ainda não chegou e só
encontramos água nos poços comunitários. É uma das aldeias mais pobres da
província. O clima de guerra e violência também não ajuda ao desenvolvimento.
Em 2017, aconteceram
os primeiros ataques em Cabo Delgado. A guerra começou com operações violentas
e de pequena escala, no distrito de Mocímboa da Praia, e intensificou-se a
partir de 2019, com a chegada de dezenas de combatentes jihadistas estrangeiros
e a entrada de armamento mais sofisticado, tendo-se estendido os ataques a
todos os distritos.
Na missão
onde me encontro, os terroristas do Estado Islâmico atacaram, pela primeira vez,
várias comunidades, em Outubro de 2022. Durante dias, queimaram capelas, casas
e roubaram diversos bens nos mercados. Muitos acabaram por morrer às mãos
destes homens. Quase dois anos depois, em Fevereiro deste ano, os insurgentes
voltaram a entrar, desta vez na aldeia onde moro e onde fica a casa da missão. Graças
à prontidão do exército do Ruanda, a missão foi poupada, mas muitas vidas não.
Nos
dias que se seguiram, mais de 100 mil pessoas fugiram das suas casas. Cerca de
60% são crianças. Muitos partiram numa
viagem sem destino, por machambas (campos agrícolas) e estradas, com crianças
ao colo e os poucos pertences amarrados numa capulana e levados à cabeça, e num
movimento simultâneo de milhares de pessoas.
Há
muitos lugares que se tornam refúgios quando há um ataque. Conto-vos duas
histórias. O papá Joaquim Girajeque disse-me que albergou na casa dele cerca de
50 pessoas. Alguns eram da família. Outros eram-lhes desconhecidos. Mas todos
eram irmãos. A varanda da casa foi porto de abrigo de homens e as mulheres e
crianças dormiam no interior. Repartiu com aqueles que chegava o pouco que
tinha: aos que vinham com fome e sede, deu-lhes de comer e de beber… aos que
não conseguiram trazer roupa nenhuma, partilhou a pouca que tinha… aos que
estavam doentes, ele cuidou!
A
jovem mamã Arcélida foi uma das que precisou de ser acolhida. Fugiu da casa a
meio da tarde quando ouviu os primeiros disparos na nossa aldeia. O sol que
ainda se fazia sentir com intensidade e o estado de graça em que se encontrava
(estava quase com 9 meses de gestação) não lhe permitiam correr. Mesmo assim
percorreu quase 20km, a pé e num passo acelerado, e conseguiu passar o rio
Lúrio. Na primeira casa que viu, sentou-se um pouquinho na varanda e pediu para
descansar. E o Benjamim, curioso com o mundo, decidiu nascer naquela mesma
casa. Naquela mesma e dolorosa noite. De manhã, quando os encontrei, vi a serenidade
dele dormindo, sem imaginar o sofrimento da sua mãe e o mundo que o espera!
Aqui, em
Cabo Delgado, aprendi a viver com as notícias da guerra. Antes eram longínquas.
Agora, que conheço os rostos e os nomes que esta guerra feriu e continua a
provocar sofrimento, vivo, de forma diferente. E eu assisto todos os dias, com
muita tristeza e angústia, ao sofrimento do “meu” povo! Mas também experimento
o verdadeiro sentido da caridade, da presença… do “estamos aqui”! Tanta gente
boa que conheci e que nos quis ajudar! Ao longo destes últimos meses fui doando
tudo quanto tínha… roupas, comida, cobertores, lonas… E fui-me doando. Ouvi as
mamãs Joaquina e Sónia que perderam os seus maridos neste ataque, o papá
Joaquim que foi capturado por eles… e os rostos dos filhos pequeninos que
continuam sem entender a ausência daqueles que tanto amavam e… e ainda hoje
continuam a perguntar quando é que o papá volta do campo.
Infelizmente,
em todas as partes do mundo, “quando os ricos fazem a guerra, são sempre os
pobres que morrem.” (Jean Paul Satre).
Fátima
Castro